ruido silencioso

Palavras soltas de um ruído silencioso

30.6.05

Poesia da vida

Eu gostava de saber escrever assim:

TORCIDA

Mesmo antes de nascer, já tinha alguém torcendo por você. Tinha gente que torcia para você ser menino. Outros torciam para você ser menina. Torciam para você puxar a beleza da mãe, o bom humor do pai. Estavam torcendo para você nascer perfeito. Daí continuaram torcendo. Torceram pelo seu primeiro sorriso, pela primeira palavra, pelo primeiro passo. O seu primeiro dia de escola foi a maior torcida. E o primeiro gol, então? E de tanto torcerem por você, você aprendeu a torcer. Começou a torcer para ganhar muitos presentes e flagrar Papai Noel. Torcia o nariz para o quiabo e a escarola. Mas torcia por hambúrguer e refrigerante. Começou a torcer até para um time. Provavelmente, nesse dia, você descobriu que tem gente que torce diferente de você. Seus pais torciam para você comer de boca fechada, tomar banho, escovar os dentes, estudar inglês e piano. Eles só estavam torcendo para você ser uma pessoa bacana. Seus amigos torciam para você usar brinco, cabular aula, falar palavrão.Eles também estavam torcendo para você ser bacana.Nessas horas, você só torcia para não ter nascido. E por não saber pelo que você torcia, torcia torcido. Torceu para seus irmãos se ferrarem, torceu para o mundo explodir. E quando os hormônios começaram a torcer, torceu pelo primeiro beijo, pelo primeiro amasso. Depois começou a torcer pela sua liberdade. Torcia para viajar com a turma, ficar até tarde na rua.Sua mãe só torcia para você chegar vivo em casa.Passou a torcer o nariz para as roupas da sua irmã, para as idéias dos professores e para qualquer opinião dos seus pais.T odo mundo queria era torcer o seu pescoço.Foi quando até você começou a torcer pelo seu futuro. Torceu para ser médico, músico, advogado. Na dúvida, torceu para ser físico nuclear ou jogador de futebol.Seus pais torciam para passar logo essa fase. No dia do vestibular, uma grande torcida se formou. Pais, avós, vizinhos, namoradas e todos os santos torceram por você.Na faculdade, então, era torcida pra todo lado. Para a direita, esquerda, contra a corrupção, a fome na Albânia e o preço da coxinha na cantina.E, de torcida em torcida, um dia teve um torcicolo de tanto olhar para ela.Primeiro torceu para ela não ter outro. Torceu para ela não te achar muito baixo, muito alto, muito gordo, muito magro. Descobriu que ela torcia igual a você. E de repente vocês estavam torcendo para não acordar desse sonho. Torceram para ganhar a geladeira, o microondas e a grana para a viagem de lua-de-mel. E daí pra frente você entendeu que a vida é uma grande torcida. Porque, mesmo antes do seu filho nascer, já tinha muita gente torcendo por ele. Mesmo com toda essa torcida, pode ser que você ainda não tenha conquistado algumas coisas. Mas muita gente ainda torce por você! "Se procurar bem você acaba encontrando. Não a explicação (duvidosa) da vida, mas a poesia (inexplicável) da vida".

Carlos Drummond de Andrade

29.6.05

A verdade

La Réponse Imprévue, René Magritte, 1933
Verdade
A porta da verdade estava aberta,
mas só deixava passar
meia pessoa de cada vez.
Assim não era possível atingir toda a verdade,
porque a meia pessoa que entrava
só trazia o perfil de meia verdade.
E sua segunda metade
voltava igualmente com meio perfil.
E os meios perfis não coincidiam.
Arrebentaram a porta. Derrubaram a porta.
Chegaram ao lugar luminoso
onde a verdade esplendia seus fogos.
Era dividida em metades
diferentes uma da outra.
Chegou-se a discutir qual a metade mais bela.
Nenhuma das duas era totalmente bela.
E carecia optar. Cada um optou conforme
seu capricho, sua ilusão, sua miopia.
(Carlos Drummond de Andrade)

27.6.05

Luz

14.6.05

Até Amanhã

Há nomes que dizem tudo. Álvaro Cunhal (1913-2005) e Eugénio de Andrade (1932-2005).
Um sonhava com a acção, o outro sonhava com a palavra. Eis algumas das suas palavras:

"Passamos pelas coisas sem as ver,

gastos, como animais envelhecidos:

se alguém chama por nós não respondemos,

se alguém nos pede amor não estremecemos,

como frutos de sombra sem sabor,

vamos caindo ao chão, apodrecidos."

11.6.05

Espelhos

Hoje, frente ao mar, vi-me reflectida neste texto:
"é sempre terrível ver um homem que se julga absoluta e seguramente só, porque há nele algo de trágico, talvez mesmo sagrado, e ao mesmo tempo horrendo e vergonhoso. Usamos sempre uma máscara, dizia Bruno, mas nunca é a mesma, porque varia em cada um dos lugares que ocupamos na vida: a do professor, a do amante, a do intelectual, a do herói, a do irmão carinhoso. Mas que máscara pomos ou que máscara resta quando estamos na solidão, quando cremos que ninguém, ninguém, nos observa, nos controla, nos escuta, nos exige, nos suplica, nos intima, nos ataca? Talvez o carácter sagrado dese instante se deva a que o homem se encontra então diante da Divindade ou, pelo menos, diante da sua própria e implacável consciência". Resistir, Ernesto Sabato

2.6.05

Preguiça